Perseguição e saída de integrante do RIIZE relembra a face negativa da indústria e a toxicidade da relação entre artistas e fandom
(SM Entertainment/Reprodução)
Todos foram pegos de surpresa com o retorno repentino e, também relâmpago, de Seunghan ao RIIZE, afastado do grupo por quase um ano. A felicidade dos fãs foi rápida e substituída por revolta, já que o integrante teve sua saída oficialmente anunciada três dias depois. Um caso que relembra um ciclo longe de ser rompido na indústria.
Ter uma vida pessoal não é uma tarefa fácil para celebridades, nem fãs, nem a mídia parece saber um limite entre o profissional e o pessoal e constantemente cruzam essa linha que deveria ser bem delimitada. No fim do dia, todos querem uma nova descoberta do artista favorito e saber o máximo possível sobre suas vidas para aumentar uma conexão entre fãs e artistas.
No K-pop é simples notar como essa sensação de proximidade é criada com o público bombardeado com informações constantes de programas de TV, realities shows, livestreams e eventos. Quando as celebridades são vistas como mero produto pela indústria do entretenimento em geral, no K-pop os ídolos são quase uma caixa de massinha de modelar esperando para serem moldados pelas empresas e por seus respectivos fandoms. Um ciclo de desumanização que parece bem distante do fim.
Casos como o de Seunghan comprovam que as empresas não são os únicos desafios na vida de um artista e destacam uma complexa relação na indústria do K-pop.
Mais uma vítima do ciclo de toxicidade da indústria
(SM Entertainment/Reprodução)
O RIIZE soube como captar a atenção em seu debut: um novo boygroup da SM Entertainment, dois membros conhecidos por terem integrado o NCT e um single forte. Composto por sete membros, o grupo mostrou uma promissora estreia. No entanto, a formação de sete integrantes durou pouco e em novembro, Seunghan foi afastado por tempo indeterminado.
Nesse meio tempo entre o debut ao hiato, o cenário não foi fácil para o RIIZE, que enfrentou vazamento de informações pessoais constantes. Antes do lançamento de Get a Guitar (2024), single de estreia do grupo, Seunghan precisou se pronunciar sobre fotos pessoais em que estaria fumando e beijando uma ex-namorada antes do debut. Embora em seu pronunciamento a SM tenha apontado que os vazamentos de conteúdo foram maliciosamente editados e produzidos para prejudicar o cantor, chamando-os de "difamação grave”, a situação não foi amenizada. A partir de 22 de novembro, o RIIZE passou a promover com seis integrantes, enquanto foi dito que a decisão ocorreu em comum acordo com Seunghan e uma ação judicial contra os culpados seria feita.
É válido apontar a indiferença da SM em lidar com o caso que poderia ter sido melhor administrado desde o início. Apesar de pontuar que lidaria judicialmente com os culpados, parecia mais que Seunghan lidava sozinho com a invasão de sua privacidade. No K-pop, há exemplos de artistas e empresas que adotaram uma postura mais dura para lidar com cyberbullying, como a condenação do youtuber conhecido como Sojang por difamar Wonyoung do IVE e o solista Kang Daniel, além de Lay Zhang do EXO, que levou vários internautas ao tribunal por perseguições online. Administrar a situação com mais impetuosidade não deveria ser problema para uma empresa de tal porte.
Durante o período de afastamento, há indicativos de que os membros do RIIZE foram orientados a não mencionar Seunghan, bem como a imprensa. Uma pressão que a mídia sul-coreana acatou, levando em consideração uma possível influência editorial da SM. Na passagem do boygroup por Los Angeles, a Billboard confirmou que um representante da agência sul-coreana pediu para que o integrante não fosse citado na entrevista e nenhuma pergunta sobre a permanência do ídolo foi respondida.
Após a publicação da capa digital da Billboard, outros veículos se manifestaram contra a postura da SM, Koreaboo observou que o veículo norte-americano "mencionou com precisão Seunghan como um membro atual, algo que algumas fontes de mídia não fizeram desde que seu hiato indefinido começou", o que TheUBJ.com apontou que Seunghan é "frequentemente omitido por outras mídias".
Por quase um ano o boygroup seguiu sem sua formação original até 10 de outubro deste ano, quando a agência confirmou o retorno de Seunghan. O integrante voltou, mas novamente não obteve a devida proteção. Indiretamente, a SM permitiu que coroas de flores fúnebres destinadas ao jovem fossem deixadas em frente ao seu prédio. Infelizmente não foi apenas um pequeno ato, na verdade, múltiplas coroas permaneceram por dias no mesmo lugar sem que a agência tomasse uma atitude.
Segundo os fãs sul-coreanos, a imagem do grupo seria prejudicada pela presença do membro. No fim, a empresa cedeu a dois dias de pressões de um pequeno grupo ao invés de se manter firme, à medida que também ignorou meses de demonstrações de apoio a Seunghan pelos demais fãs.
(Reprodução)
A empresa se comprometeu a proteger seu artista, mas parece uma ilusão quando vemos como Seunghan foi deixado à própria sorte durante todo esse tempo. Por mais que os ataques tenham sido feitos por fãs da Coreia do Sul, a atitude foi condenada por internautas do país, que inclusive apontaram a falta de profissionalismo da agência.
Uma indústria que deseja o mercado global, mas não está disposto a ouvi-lo
(SM Entertainment/Reprodução)
Enquanto as flores fúnebres não paravam de chegar na sede da agência, o fandom global se concentrou em mostrar apoio em números que realmente importam. Em 48 horas foi registrado um aumento de ouvintes mensais no Spotify, seguidores nas redes sociais e streaming das músicas e Music Videos do grupo. O apoio foi cessado após o anúncio da saída de Seunghan. Decepcionadas e em busca de mostrar que também são fundamentais para a carreira do RIIZE, o fandom global decidiu aderir a um boicote.
Mostrou-se evidente a cisão no fandom e como a SM estava disposta a beneficiar apenas um lado. A manifestação das fãs sul-coreanas revoltou os BRIIZES internacionais, que consideram a atitude desrespeitosa e classificam os participantes desse ato de "bullies", ao mesmo tempo em que apontam a SM como conivente.
A mobilização começou pelas redes sociais, aqueles que apoiavam Seunghan fizeram as hashtags "#SMSupportsBullying" e "BRING SEUNGHAN BACK" alcançarem o topo dos trend topics. Uma postura mais dura foi tomada para exigir justiça ao integrante e o perfil oficial do Instagram e Twitter perdeu mais de 150 mil seguidores. A movimentação também recebeu apoio da comunidade, apoiadores de outros artistas de K-pop mostraram apoio a Seunghan. O ambiente online não foi o único local das manifestações, diversos caminhões com mensagens a favor de Seunghan foram enviados à sede da SM Entertainment.
A saída de Seunghan revela como as empresas de K-Pop permanecem indispostas a ouvir qualquer apelo do público internacional, apesar de almejá-lo. Na prática, a última palavra será do fandom local e sempre existirá essa delimitação para as empresas. Era um cenário exaustivo para quem acompanhou as três primeiras gerações do K-pop, embora de certa forma, compreensível uma vez que naquele momento as agências não se propunham a contemplar o mercado global. No entanto, em 2024 vemos grupos recém-estreados sendo enviados para promover fora da Ásia e as empresas deixam claro o objetivo de investir na carreira internacional, este foi o caso do RIIZE.
Get a Guitar foi lançado em uma parceria entre a SM Entertainment e a gravadora americana RCA Records, que trabalhou em conjunto com as atividades do SuperM, posicionanto o RIIZE como um “ato pop global”. No entanto, a falta de profissionalismo da SM Entertainment explicita a fragilidade em sustentar a dita posição “global” caso sofre uma merda pressão local.
Seunghan não é a primeira, nem a última vítima
De certa forma, a SM lida com as consequências de seus próprios ideais, que inevitavelmente respingam nos artistas dentro e fora de seu domínio. Afinal, a empresa fundada por Lee Soo Man estimulou essa imagem de perfeição remetida aos idols como conhecemos agora e, sem dúvidas contribuiu para construir uma visão distorcida de como celebridades devem se portar em uma sociedade que parece que vive um tribunal todos os dias — exceto com assuntos realmente graves.
Não é novidade a forma como as empresas criam uma persona para os integrantes que nem sempre condiz com a real personalidade para entregar celebridades quase a medida. O fanservice desenfreado alimentou por muito tempo as relações parassociais com ídolos e os famosos ships, encorajando as fanbases a acreditarem em romances entre os integrantes. Por muito tempo o K-pop normalizou a cláusula de “não namoro” nos contratos e a proibição de celulares pessoais, algo que era abertamente comentado pelos artistas em programas de TV. Uma forma que as agências encontraram de frear a vida romântica e evitar uma publicidade negativa com possíveis “escândalos”.
Seunghan não é a primeira, nem a última vítima dessa relação tóxica entre fãs e ídolos, que ainda parece longe de ter um ponto final. Por gastarem tempo, energia emocional e dinheiro com seus artistas favoritos, esses fãs acreditam que o outro lado possui uma “dívida”, que deve ser retribuída com um tipo de fidelidade e uma imagem “limpa”. Por isso, relacionamentos costumam ter uma recepção negativa, uma vez que entram em conflito com as expectativas criadas e, consequentemente, com essa relação de possessividade, ao lembrar que essas celebridades são humanos.
(SM & DR/Reprodução)
Ao longo das gerações do K-pop, as fanbases de grupos masculinos eram conhecidas pela hostilidade com mulheres, famosas ou não, que se aproximavam. Um dos casos mais conhecidos aconteceu em 1999, quando fãs do H.O.T passaram a perseguir o Baby V.O.X após rumores de namoro — negados na época. Ainda que a informação tenha sido infundada, não impediu as fãs de Moon Heejun de atacarem Kan Miyoun e estender seu ódio para as demais integrantes.
“Sempre que estamos na estrada nos apresentando, temos esse medo... Entrando e saindo do carro, estamos constantemente aterrorizados. Não sabemos quem vai jogar o quê em nós”, disse Eunjin em uma entrevista.
Relatos da época revelam que as cantoras sofreram ataques físicos e verbais, foram recebidas com lixo e ovos, Miyoun se cortou após receber uma carta com giletes, Eunjin foi presenteada com um gato morto e foi atacada com spray de pimenta e levada as pressas ao hospital. O comportamento da fanbase do H.O.T estimulou também o fandom do Shinhwan a ter um comportamento negativo com o girlgroup. Vale lembrar que na época, as integrantes do Baby V.O.X eram menores de idade.
Nos anos seguintes o comportamento se manteve, ainda que sem violência física. A segunda e terceira geração continuaram com esse “legado”. Fanbases fiéis, formadas por jovens mulheres que causavam um temor tão grande na indústria que ídolos femininos costumavam ser cautelosas em suas interações para não criarem maiores confusões e se tornarem alvo.
Em 2010, a atriz Shin Se Kyung sofreu com ataques online vindos de fãs do SHINee após seu namoro com Jonghyun vir a público. Embora divida opiniões, o namoro de Baekhyun e Taeyeon, causou uma onda de hostilização contra a líder do Girls Generation no final de 2014. Supostas namoradas de G-Dragon do BIGBANG sofriam com ataques nas redes sociais de fãs que se agarram a ideia de um romance entre o líder e o ex-membro Seungri.
Se por anos namoros públicos e pacíficos eram impensáveis no K-pop, os casamentos eram mais raros ainda. Chen, membro do EXO, passou por uma recepção similar a de Seunghan quando informou que seria pai e se casaria. Em 2020, todos foram surpreendidos com o anúncio do cantor, o cenário internacional foi positivo, diferente das EXO-Ls da Coreia do Sul que pediam pela sua saída do grupo. Manifestações contra Chen incluíram um grupo em frente ao prédio da SM. Fãs de outros artistas também destinaram comentários hostis ao cantor, por encará-lo como um “mau exemplo” e poderia influenciar outras celebridades.
(Reprodução)
Na época, a SM Entertainment não foi de grande ajuda em proteger seu artista, que contou com apoio internacional. Quatro anos após os protestos negativos, o cantor permanece como membro ativo no EXO e em suas atividades solo. A posição de muitos fãs sul-coreanas não mudou, alguns fazem silêncio durante os momentos de Chen em shows ou tentam excluí-lo de fotos em grupo.
Infelizmente, algo tão comum como se relacionar amorosamente segue como um dos grandes tabus da indústria do entretenimento, sobretudo, a musical ainda em 2024, o que mais do que nunca deveria ser inaceitável. Muitas jovens consumidoras se apaixonam por seus cantores favoritos e acreditam em um casamento futuro, algo digno de uma fanfic. Tudo bem ter esse pensamento aos 13 anos, mas chegar ao ensino médio e ainda viver em tal mundo de fantasia quando você deveria se preocupar com si mesmo, é muito além.
Por padrão, um namoro público é sucedido de uma nota de desculpas de ambas as partes. Inclusive, uma prática que recebeu atenção internacional após Karina do aespa precisar se retratar com fãs por sua relação com o ator Lee Jae Wook no começo deste ano. A retratação de Karina não foi o suficiente e a líder do girlgroup recebeu manifestações negativas em frente a sede da SM Entertainment. Assim como aconteceu com Seunghan, os fãs sul-coreanos taxaram o comportamento como prejudicial à imagem do grupo. Receber uma atenção global negativa não agradou os sul-coreanos, que chamaram o episódio de “vergonha nacional”.
Enquanto os ídolos sofrem com perseguições, comentários de ódio e têm sua imagem manchada por relacionamentos públicos, a hostilidade e pressão pública não é dada na mesma proporção com assuntos realmente sérios. Pouco antes do retorno de Seunghan, foi revelado que Taeil, agora ex-integrante do NCT, estava em meio a um processo por abuso sexual. Jung Joon Young, Choi Jonghoon e Seungri saíram da prisão após o caso Burning Sun e demonstram interesse em retomar suas carreiras. Há poucos meses, ocorreu um novo bombardeio de crime sexual na Coreia do Sul com grupos de homens utilizando recursos de deep fakes para coagir mulheres. Além da lista do NTH Room que supostamente possui o nome de diversos figurões da indústria, mas nunca foi divulgada ao público e também não sofreu pressão popular o suficiente para que algo fosse feito.
Quando um ídolo debuta em um grupo há um passado, como qualquer pessoa ele tem uma família, foi criado de uma determinada forma e frequentou uma escola. Ele não é um boneco que passou a vida em uma caixa, esperando para ser escolhido quando as empresas precisam de uma nova estrela. Seunghan é um jovem de 21 anos, mas estreou no RIIZE aos 19 anos quando viu sua vida pessoal ser revirada. Ele é filho, neto, amigo e irmão de pessoas comuns na sociedade, que presenciaram a sua hostilização como um criminoso e ter seu sonho interrompido. O adolescentes das fotos não cometeu crimes, mas foi apenas vítima de uma sociedade que vive na hipocrisia de um suposto conservadorismo para deliberadamente propagar ódio pelos motivos mais banais, perseguições essas que não se estendem na mesma proporção contra reais criminosos.
Em resposta às recentes decisões e ao comportamento desrespeitoso das fãs sul-coreanas. A comunidade global segue com o boicote ao RIIZE, as BRIIZES defendem que um boicote é momentâneo, ao contrário da saída de um membro. Não há como saber onde esses boicotes irão levar, óbvio que todo fã deseja que a SM Entertainment volte atrás e convença Seunghan a retornar, mas é claro dando o suporte judicial e psicológico necessário — afinal, ele passou por uma perseguição intensa em uma idade muito jovem.
Embora não seja simples prever os resultados, tal movimentação é importante para mostrar que essa influência tóxica dos fãs sob os ídolos não deve ser mais normalizada, não há lógica em odiar uma pessoa por viver. Além de ser uma forma de mostrar que os fãs fora da Coreia do Sul não vão mais aceitar serem silenciados. E, diferente do que a fanbase sul-coreana por muito tempo acreditou, a comunidade de outros países possuem sua força para alavancar a carreiras dos grupos de K-pop.
Ao mesmo tempo também é válido fazermos uma autocrítica, não são apenas as coroas de flores enviadas para frente da empresa e comentários em hangul que movimentam esse ciclo. Mas também a forma como os fãs em geral se comportam perante a uma notícia nova de relacionamento. Afinal, não é incomum ver discordâncias com as escolhas das celebridades, seja por não acharem o parceiro à altura, questões de fanwar ou até por se sentir em uma posição em que sabem o que é melhor para a vida de uma pessoa que apenas conhecem pelas telas. No final do dia todos precisam reconhecer o seu respectivo lugar, fã é apenas fã, o consumismo e dedicação não dão direito a controlar a vida de ninguém.
Comments