Espectadores sul-coreanos são zelosos com a forma pela qual suas histórias são contadas em doramas; confira a entrevista abaixo e entenda!
(Divulgação JTBC / Apple TV+)
A essência dos doramas está em servir os mais diversos temas e ter a capacidade de agradar todos os públicos. Romance, ação e dramas hospitalares são bem recorrentes entre os gêneros, mas também não podemos deixar de lado as tramas históricas, aquelas que abordam o passado da Coreia do Sul e são significativas para demonstrar, através de produções que unem a ficção e o mundo real, como o país se tornou o que é hoje.
Os doramas de época retratam bem o contexto histórico da antiga Coreia, mostrando através de ambientações, vestimentas, poder e hierarquias e, frequentemente, abordam como funcionava o país durante as dinastias, principalmente a Joseon, estado coreano fundado pelo rei Taejo Yi Seon Gye que perdurou de 1392 até 1897. Porém, algumas produções fogem da conjuntura onde o aspecto histórico é apenas o cenário da trama, e passa a ser o foco central da história. O que há em comum entre esses dois tipos de narrativa é o fato de que elas precisam ser tratadas com sensibilidade, pois são assuntos delicados aos olhos dos nativos sul-coreanos.
Snowdrop se enquadra nessa categoria, a história estrelada por Jisoo do Blackpink e Jung Haein é baseada nos manuscritos de um homem que fugiu da Coreia do Norte. Im Suho é um espião norte-coreano que aparece ferido no dormitório de uma faculdade na Coreia do Sul. O rapaz recebe cuidados da Eun Yeongro, que o acoberta, e eles acabam engatando em um romance. A trama se passa em 1987, quando o país sul coreano estava protestando em busca de democracia. Tal enredo, mesmo antes de seu lançamento, teve repercussão negativa por parte dos coreanos, resultando na criação de petição organizada pela Casa Azul, assinada por 300 mil pessoas que solicitaram que o drama não fosse desenvolvido.
O dorama foi acusado de gerar controvérsias sobre a história coreana, resultando na perda de inúmeras marcas que patrocinariam a produção. A emissora JTBC, que esteve por trás da produção, justificou que seria uma trama ficcional, apesar de se passar em uma época importante para as definições políticas do país.
A atração sofreu alterações em seu roteiro, e a personagem de Jisoo teve seu nome alterado para não ser relacionada com a ativista pró-democracia Chun Youngcho e consequentemente gerar um conflito político entre os espectadores. De acordo com Kim Ji Yun, nativa do país e professora do curso de coreano da USP, a grande preocupação dos coreanos é que a história sofra distorções e gere interpretações incoerentes. Ela explica:
A rejeição pelo público é sobre interpretação errada que acontece em algumas obras midiáticas, não pelo conteúdo do passado. E acho que as distorções dos fatos históricos em favor da narrativa da ficção são fortemente criticadas mesmo que o conteúdo seja fictício.
Neste contexto, é possível enxergar o zelo do povo coreano sobre sua própria história, embora a reação para com o k-drama não seja algo tão incomum. Portanto, a professora e coordenadora do curso da USP de Língua e Literatura Coreana, Yun Jung Im Park, reafirma o motivo da insatisfação e nega que exista uma rejeição do conteúdo. “Boa parte das polêmicas em torno de conteúdos históricos vem de posições políticas controversas no que tange à interpretação do passado. Por exemplo, se uma novela retrata o movimento estudantil da década de 80, vai acabar pisando em ovos: uma parcela da população acredita que eles sofreram lavagem cerebral por parte dos espiões norte-coreanos, enquanto que há uma outra parcela que os têm como heróis que ajudaram a construir a democracia plena que vive a Coreia hoje”, ela conta.
"O problema para os conteúdos históricos tem sido a ascensão Hallyu"
Mesmo que haja uma preocupação acerca de como a história será contada, a coordenadora levanta um ponto relevante sobre a importância de k-dramas que entreguem conteúdos mais densos e realistas como Snowdrop. Yun Jung Im ressalta que espectadores comuns se tornam melhor informados através desses e, em paralelo, a Coreia do Sul tem a chance de mostrar, para um público maior, o cenário que o país viveu em decorrência das suas condições geopolíticas.
Em contrapartida, a especialista considera que tais produções estejam passando por um esgotamento, trazendo ao público histórias que entregam apenas a estética, sem nada além disso relacionado ao contexto histórico. “O problema maior para os conteúdos históricos tem sido a ascensão da hallyu, pois, com a explosão da demanda internacional, os produtores passaram a pensar nas novelas com o foco na exportação”, afirma. Tendo em vista esse raciocínio, mesmo que sejam histórias de ficção, manter a essência genuína do passado do país é imprescindível.
O drama Pousando No Amor, muito querido por fãs internacionais, também foi alvo de críticas. A produção foi acusada, pelo Partido de Liberdade Cristã, de romantizar o estado recluso e mostrar soldados norte-coreanos de forma pacífica. Além disso, a emissora tvN, responsável pela trama, foi notificada pelo partido de, supostamente, violar a Lei de Segurança Nacional e retratar que a Coreia do Norte é a principal oponente da Coreia do Sul. Ainda, o partido de extrema direita afirmou que a lei de segurança do país deixa nítido que não devem simpatizar com organizações que promovem o anti-governo.
(Divulgação / tvN)
Em resposta, o produtor do dorama, Lee Jung Hyo, defendeu a história: "Sabemos que algumas pessoas estão desconfortáveis com o nosso assunto, mas não abordamos uma Coreia do Norte tão autêntica em nosso dorama. O cenário predominante é baseado em fantasia e apenas alguns aspectos refletem um panorama norte-coreano". Apesar da tentativa de boicote, Pousando No Amor teve uma boa audiência. De acordo com a agência de audiência Nielsen Korea, o dorama teve seu maior pico no episódio final, com 19.2%.
Com enredo histórico, Joseon Exorcist também sofreu críticas. A produção da emissora SBS tinha a dinastia Joseon como cenário, porém o roteirista Park Kye Ok foi acusado de ter construído um roteiro para propositalmente "zombar" da história coreana através da sua base ficcional, onde o rei Lee Sung Kye, sucessor de Taejo Yi Seon Gye, decide converter seu reino budista em católico, e todos que se opõem são punidos.
Ao contrário dos outros dois exemplos, o dorama foi cancelado após o segundo episódio. Assim como Snowdrop, uma petição foi criada, e atingiu mais de 100 mil assinaturas. A repercussão chegou até a Casa Azul e a emissora não pôde mais exibir a produção.
Pachinko pode seguir pelo mesmo caminho?
(Divulgação / Apple TV+)
Enquanto algumas tramas sofreram desafios para seus lançamentos, Pachinko, baseado em livro homônimo da autora Min Jin Lee, teve uma boa recepção global. Até o fechamento desta reportagem, o k-drama recebeu avaliação de 98% de aprovação pelo site Rotten Tomatoes.
O dorama original da Apple TV+ tem Lee Minho, Youn Yujung e Kim Minha no elenco e conta a história da jovem coreana Sunja, que migra para o Japão em busca de uma vida melhor. O enredo caminha por quatro gerações familiares que são marcadas pelo contexto histórico da época, envolvendo guerras e colonização.
A atração tem uma premissa muito significativa para a população nativa na Coreia do sul, como afirma a YouTuber Carol Pardini, do canal Na Coreia Tem: "Pachinko dá voz a um povo que sofreu muito ao longo da sua história mas que segue firme, independente das adversidades, e com o drama a gente entende quão profundas foram essas adversidades". Tendo isso em vista, a adaptação cumpre bem a ideia central da roteirista Soo Hugh, que defende: "Esta é uma história e uma homenagem aos meus antepassados. É também uma história dedicada a todos os 'pioneiros' que existem na nossa história familiar."
No ponto de vista mais generalizado, a coordenadora Yun Jung Im Park afirma que o dorama poderia despertar um sentimento anti-nipônico entre coreanos e provocar os japoneses que engrossam o movimento hate-Korea. Enquanto a professora Kim Ji Yun fala como foi o impacto de Pachinko em si mesma: "Li o romance e achei muito bom em vários sentidos, mas o que me impressionou mais foi a descrição detalhada sobre a cultura tradicional da Coreia de maneira tão exata e rica através dos personagens. Cada um carrega a cultura de cada espaço e época diferente. Enquanto lia a obra, sentia como se conhecesse os personagens na vida real".
Mesmo gerando diferentes interpretações e reações, é indiscutível que produções que contextualizam o passado são imprescindíveis. Não apenas para entretenimento, mas, principalmente, para apresentar o momento histórico e cultural, seja da Coreia do Sul ou de qualquer outro país. "Acredito que através do entretenimento a gente consegue aprender demais sobre uma cultura e, principalmente, sobre a história dela. Obras audiovisuais podem e devem ser criativas, mas respeitando sempre o momento histórico e os fatos macros que aconteceram naquele período", afirma Pardini.
Kim Ji Yun tem opinião similar e afirma que os conteúdos midiáticos permitem interpretações sobre histórias do passado da Coreia de maneira mais criativa, livre e variada do que é ensinado em sala de aula. "Mostram o fato de que o passado só existe através de determinado ponto de vista da interpretação, não como um único fato verdadeiro que aconteceu no passado", finaliza.
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