Livro do quadrinista foi publicado em agosto pela editora HarperCollins, com cinco histórias inspiradas em vivências e descendências
(HarperCollins Brasil/Divulgação)
Quem nós somos de verdade? Talvez existam respostas diferentes para esta pergunta, mas um fato existe para todos nós: a pluralidade das pessoas que nos cercam atinge e influencia cada um para sempre. E esse é um dos temas tratados no livro Vozes Amarelas, lançado pelo escritor e quadrinista Monge Han em agosto deste ano pela HarperCollins Brasil.
O quadrinho é um compilado de cinco histórias — três lançadas digitalmente antes, e duas inéditas — que, juntas, percorrem a trajetória de personagens racializados, originários ou descendentes de sul-coreanos, que muito têm a ver com o próprio Monge Han: ele é um dos protagonistas do livro. As ilustrações feitas pelo autor são cheias de vida, e a narrativa traz muito sentimento; o público lerá a vivência de alguém que, com sensibilidade, passou para as páginas de Vozes Amarelas experiências que marcaram sua família e a forma de se ver no mundo.
O Café com Kimchi pôde falar com o Monge Han a respeito do livro, antes do autor embarcar numa turnê de lançamento para Vozes Amarelas, que incluiu a Bienal do Livro de 2023 no Rio de Janeiro. Para conhecer mais a respeito, continue lendo a entrevista abaixo!
O interesse pelas artes fez Monge Han, autor de "Vozes Amarelas", chegar até aqui
Na conversa sobre Vozes Amarelas, Monge Han relata que o interesse pela arte veio desde criança, na época do colégio. A paixão pelo desenho caminhou ao seu lado com o passar dos anos, e ele sempre soube que era isso que queria fazer. "Quando tive que decidir um caminho, eu já sabia que queria fazer quadrinhos, mas não sabia se seria algo possível. Acabei estudando Design Gráfico, e hoje em dia trabalho em muitas coisas diferentes, mas meu trabalho pessoal é muito focado em HQs", conta. O artista diz que seus projetos evoluíram e se adaptaram com o tempo, mas os quadrinhos sempre estiveram ali, ao alcance da mão.
E falando nisso, o Monge diz que os mangás também são parte de sua realidade. A partir do gosto por desenhar e das primeiras referências em bandas desenhadas, o autor evoluiu seu trabalho até chegar no período em que produziu as primeiras histórias que compõem o livro inédito: Criança Amarela, Hamoni e Criança Amarela Colorida.
Os três contos citados foram lançamentos que ajudaram a definir a figura de Monge Han como quadrinista na internet, em decorrência da viralização e receptividade que tais histórias tiveram nas épocas em que foram postadas online. E desse modo, por trás da criação, houve um período de reflexão do artista relacionado a sua própria forma de se enxergar em sociedade. "Uma coisa que me fez entender que era muito importante falar sobre esses temas, foi quando eu estava com vinte e poucos anos, e vi um vídeo de uma YouTuber falando sobre a emasculação do homem asiático. Era um vídeo falando a respeito disso, e na época, era um assunto não tão abordado no Brasil para pessoas de fora do meio acadêmico".
Quando vi isso, pensei sobre várias coisas da minha vida que aconteciam por eu ser amarelo, e foi aí que percebi que eu não era de fato um rapaz branco. Quando notei que quase ninguém na web falava sobre o assunto, tive a ideia de contar isso nos quadrinhos.
A realização de Monge Han a respeito de sua própria imagem perante a sociedade, como alguém amarelo e racializado, tomou forma e cores a partir das histórias que estão em Vozes Amarelas. Para além de produzir algo que fosse representativo, o quadrinista quis colocar suas percepções de mundo nas produções; mas isso não o impediu de entender que, no macro, os quadrinhos também eram retratos sociais de uma experiência coletiva. "Quando eu estava escrevendo Criança Amarela, lá em 2018, eu quase não o publiquei. Eu pensava coisas como, 'se eu publicar isso, as pessoas vão achar nada a ver', e ficava muito receoso", diz o Monge.
Contudo, a publicação de Criança Amarela fez com que as páginas do Monge Han crescessem nas redes, e o assunto viralizasse. Os projetos do artista nunca foram apenas a respeito de sua vida como um descendente de sul-coreanos, mas eventualmente as ideias relacionadas à pauta ganharam espaço em suas obras. Hamoni veio um tempo depois, sobre a avó do artista, e então Criança Amarela Colorida, que aborda um primo do Monge nas descobertas de sua racialidade e sexualidade.
Na tentativa de falar de experiências singulares, o artista acabou, de forma não-planejada, representando a experiência de várias pessoas — "muito maior do que eu", segundo Monge Han. "Eu não sabia como e o quanto (o projeto) seria aceito, mas todo esse assunto hoje já é mais discutido em certo nível. O Vozes Amarelas vem como uma compilação de toda a minha trajetória".
Livro explora a relação de coreanos com a guerra, e de crianças imigrantes com ambientes escolares do Brasil
A família de Monge Han, em Vozes Amarelas, é uma figura onipresente: os membros são as faces das reflexões. Em uma das histórias inéditas, Suni, o quadrinista relata uma experiência vivida pela mãe na infância num colégio estadual de São Paulo. O autor conta que ela veio para o Brasil ainda muito nova, e que uma das primeiras memórias da mãe é a de sua viagem no barco da imigração.
A dupla-nacionalidade, carregada de culturas e impressões de mundo díspares, é um ponto levantado pelo Monge na entrevista. "É como você ser coreano e brasileiro ao mesmo tempo, e também não ser nenhum dos dois. Minha mãe viveu muito isso, e ela foi ter a consciência social de ser uma pessoa amarela quando comecei a publicar histórias sobre".
"Quando um assunto não é falado, sem nomes e referências atrelados a ele, ele parece virar algo que não existe", fala o artista. A sensação de "não-lugar" se torna palpável, e Vozes Amarelas surge como uma forma de ajudar quem vive uma realidade em que o pertencimento e a ancestralidade ainda não são visíveis.
Além do mais, Gajok é outra das histórias novas do livro lançado pela HarperCollins: o relato de uma família na Coreia que é separada durante a Guerra das Coreias, com uma mãe sobrevivendo ao lado dos filhos. O quadrinho histórico toca na pauta da imigração, com que os leitores poderão entender o porquê (dentre tantos porquês) do Brasil ser um país em que imigrantes do leste da Ásia se estabeleceram e compartilharam culturas. "É uma tentativa de fazer com que pessoas amarelas possam saber o que nossos antepassados viveram e como foi a fundação de nossas famílias, e também de conscientizar um pouco aqueles que não sabem", explica Monge Han.
Uma das principais coisas que me fez ter vontade de contar a história de "Gajok" , foi aquilo de muitas pessoas perguntarem: "você é japonês?", e eu responder que "não, sou coreano". E então as pessoas questionavam se eu era "coreano do Norte ou do Sul", pois segundo elas, ser "do Norte era algo ruim". Quando meus avós saíram da Coreia, o país tinha acabado de ser separado, e a Coreia unificada é algo que não existe mais.
O processo para escrever e reunir as histórias de Vozes Amarelas foi complexo, pois segundo Monge Han, registrar nos desenhos os relatos de seus familiares acabou sendo algo tocante e até dolorido. Em Suni, ao registrar a história de sua mãe, o escritor conta que foi doído: "às vezes, estava desenhando uma memória em que ela sofria várias vezes. Suni foi um dos quadrinhos mais emotivos que criei para o livro, e lacrimejei em diversos momentos. A memória contada pela minha mãe já me era antiga, mas ao desenhar, você está traçando pessoas reais — era a minha mãe naquelas páginas".
"Quando se está desenhando algum personagem, você acaba transmitindo e compartilhando sentimentos com ele", conta. O monge também fala que Gajok contou com muita pesquisa para a ambientação, e que a mãe do quadrinista o auxiliou muito nesse aspecto; a integração entre as memórias dos parentes com a própria vida do artista formaram o que está no livro hoje. "A experiência mais legal foi esse sentimento de conexão e entendimento".
Monge Han deseja que Vozes Amarelas seja um ponto de referência àqueles que precisam
Publicar um livro por métodos tradicionais tem sido algo inédito para o Monge Han, e o autor tem focado mais especificamente na reação de cada um que está lendo. Segundo o desenhista, os relatos que já viu tem sido muito bonitos.
"Sinto que cumpri minha missão nesse sentido (de representar a família e as experiências dela). A própria reação da minha mãe foi algo legal, pois agora ela tem uma história sobre ela; e apesar da minha avó já ter falecido, ela (a mãe do Monge) pode vê-la no livro. Sempre vejo minha mãe muito emocionada, e quando a vejo tocada pela obra, é o que mais me realiza", explica.
Ainda, Monge Han acredita que Vozes Amarelas pode trazer uma lição para alguém. Aos olhos do escritor, o livro pode servir como um ponto de referência para as discussões sobre o que é ser um amarelo brasileiro, com o relato vindo de alguém que o é:
Para aquela pessoa amarela que estava procurando algum referencial àquilo que ela passa, ou ao que ela vive, o livro será o ponto de referência. Para aquela pessoa branca que tem um amigo amarelo, e que vê ele passando por coisas que ela não sabe definir, também. E até para a pessoa que transmite preconceitos sem saber o que eles significam, ele (o livro) será uma forma de chamar sua atenção para se informar.
"Eu vejo essas histórias como um primeiro passo, e uma porta de entrada para essas coisas, pois o debate racial é algo complexo. Uma pessoa que se interessa em saber do assunto não deve ficar apenas no meu livro, e vai buscar por artigos, filmes e mais que abordam isso, pois há muitos detalhes a serem explorados da nossa vivência como pessoas descendentes de asiáticos no Brasil. O quadrinho pode ser um início para tal conhecimento", diz Monge Han.
O escritor fala que Vozes Amarelas pode, inclusive, ser um referencial para pessoas mais novas, e que o livro poderia ser incluso em escolas e bibliotecas. O alcance do material às mãos dos jovens pode, talvez, auxiliar no entendimento de crianças e adolescentes sobre quem eles são em aspectos raciais e culturais — neste recorte, os jovens amarelos. "Se isso acontecer, eu cumpri meu papel".
A respeito dos dramas e demais produtos culturais da Coreia do Sul, que chegam ao público brasileiro com maior intensidade hoje, Monge Han os vê como boas ferramentas para fazer com que a potência asiática não seja mais vista como "exótica" ou avessa; mas é importante que tais produções sejam assistidas e ouvidas com o olhar crítico e atento, para que o espectador não fetichize um povo. "Acho legal que as pessoas discutam mais sobre esses produtos, e que quem consuma também olhe com mais carinho e compaixão para as pessoas sul-coreanas brasileiras".
Vozes Amarelas é geracional e, cronologicamente, ajudou o Monge Han a enxergar a própria família de maneira mais ampla. O quadrinista, durante o bate-papo, disse que a criação do livro o auxiliou a entender com maior profundidade o que seus avós passaram, e como sua árvore genealógica chegou até aqui: no autor que homenageia a ancestralidade e a existência de uma comunidade que está nas entranhas do povo brasileiro, nas páginas vívidas, empáticas e verossimilhantes do importante e necessário Vozes Amarelas — nada disso seria possível sem o coletivo e a multifacetada existência do ser humano.
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